NECESSIDADE DE UMA PREPARAÇÃO IDEOLÓGICA DA MASSA

Antonio Gramsci (1925)

Há quase cinqüenta anos, o movimento operário revolucionário italiano vive uma situação de ilegalidade ou de semilegalidade. A liberdade de imprensa, o direito de reunião, de associação, de propaganda, foram praticamente suprimidos. A formação de quadros dirigentes do proletariado não pôde realizar-se, pois, pela via e com métodos que eram tradicionais na Itália até 1921. Os elementos operários mais ativos são perseguidos, são controlados em todos seus movimentos, em todas suas leituras: as bibliotecas operárias têm sido incendiadas ou eliminadas de outra maneira; as grandes organizações e as grandes ações de massa já não existem ou não podem organizar-se. Os militantes não participam plenamente ou só em grau muito limitado nas discussões e na oposição de idéias; a vida isolada ou as reuniões irregulares de pequenos grupos clandestinos, o hábito que pode se criar numa vida política que em outros tempos parecia exceção, suscitam sentimentos, estados de ânimo, pontos de vista que são com freqüência errôneos e inclusive às vezes mórbidos.

Os novos membros que o Partido ganha em tal situação, evidentemente homens sinceros e de vigorosa fé revolucionária, não podem ser educados em nossos métodos de ampla atividade, de amplas discussões, do controle recíproco que é próprio dos períodos de democracia e de legalidade. Anuncia-se assim um período muito grave: a massa do Partido habituando-se, na ilegalidade, a não pensar em outra coisa que nos meios necessários para escapar ao inimigo, habituando-se a ver possibilidade e organização imediata apenas com ações de pequenos grupos, vendo como os dominadores aparentemente haviam vencido e como conservam o poder com o emprego de minorias armadas e enquadradas militarmente, afasta-se insensivelmente da concepção marxista da atividade revolucionária do proletariado, e entretanto parece radicalizar-se pelo fato de que a fundo se anunciam propósitos extremistas e frases sanguinolentas, na realidade se mostra incapaz de vencer ao inimigo. A história da classe operária, especialmente na época que atravessamos, mostra como esse perigo não é imaginário. A recuperação dos partidos revolucionários, após um período de ilegalidade, caracteriza-se com freqüência por um incorrigível impulso à ação , pela ausência de toda consideração das relações reais das forças sociais, pelo estado de ânimo das grandes massas operárias e campesinas, pelas condições do armamento, etc. Assim, amiúde tem ocorrido que o Partido revolucionário se tem feito destroçar pela reação ainda não dispersada e cujas reservas não haviam sido devidamente avaliadas, entre a indiferença e a passividade das amplas massas, que , depois de todo período reacionário, se voltam muito prudentes e são facilmente objeto do pânico cada vez que se ameaça com a volta à situação da que acabaram de sair.

É difícil, em linhas gerais, que tais erros não sejam cometidos; por isso, o Partido tem que se preocupar com eles e desenvolver uma determinada atividade que tenda especialmente a melhorar sua organização, a elevar o nível intelectual dos membros que se encontrem em suas fileiras no período do terror branco e que estão destinados a converter-se no núcleo central e mais resistente a toda prova e a todo sacrifício do Partido, que guiará a revolução e administrará o Estado proletário.

O problema aparece assim mais amplo e complexo. A recuperação do movimento revolucionário e especialmente sua vitória, lançam ao Partido uma grande massa de novos elementos. Estes não podem ser rechaçados, especialmente se são de origem proletária, já que precisamente sua adesão é um dos sinais mais reveladores da revolução que se está realizando; porém o problema que se estabelece é o de impedir que o núcleo central do Partido seja submerso e desagregado pela nova enroladora onda. Todos recordamos o que tem ocorrido na Itália, depois da guerra, no Partido Socialista. O núcleo central, constituído por camaradas fiéis à causa durante o cataclismo, se restringiu até reduzir-se a uns 16.000. No Congresso de Liorna estavam representados 220.000 membros, quer dizer, que existiam no Partido 200.000 aderentes depois da guerra, sem preparação política, alheios ou quase de toda noção da doutrina marxista, presa fácil dos pequenos burgueses declamadores e fanfarrões que constituíram nos anos 1919-1920 o fenômeno do maximalismo. Não parece casual que o atual chefe do Partido Socialista e diretor do Avanti seja o próprio Pietro Nenni, entrado no Partido Socialista depois de Liorna, porém este fato resume e sintetiza em si mesmo toda debilidade ideológica e o caráter distintivo do maximalismo do pós-guerra; porém isto seria inevitável, se nosso Partido não tivesse uma linha a seguir também neste terreno, se não procurasse a tempo reforçar ideológica e politicamente seus atuais quadros e seus atuais membros, para fazê-los capazes de conter e enquadrar massas ainda mais amplas sem que a organização sofra demasiadas sacudidas e sem que a imagem do Partido seja alterada.

Temos apresentado o problema em seus termos práticos mais imediatos. Há porém uma base que é superior a toda contingência imediata.

Nós sabemos que a luta do proletariado contra o capitalismo se desenvolve em três frentes: o econômico, o político e o ideológico. A luta econômica tem três fases: de resistência contra o capitalismo, isto é, a fase sindical elementar; de ofensiva contra o capitalismo para o controle operário da produção; de luta para a eliminação do capitalismo através da socialização. Também a luta política tem três fases principais: luta para conter o poder da burguesia no estado parlamentar, quer dizer, para manter ou criar uma situação democrática de equilíbrio entre as classes que permita ao proletariado organizar-se e desenvolver-se; luta pela conquista do poder e pela criação do Estado operário, quer dizer, uma ação política complexa através da qual o proletariado mobiliza em torno de si todas as forças sociais anticapitalistas (em primeiro lugar a classe campesina), e as conduz à vitória; fase da ditadura do proletariado organizado em classe dominante para eliminar todos os obstáculos técnicos e sociais, que se interponham à realização do comunismo.

A luta econômica não pode se separar da luta política, e nem uma nem outra podem ser separadas da luta ideológica.

Em sua primeira fase sindical, a luta econômica é espontânea, quer dizer, nasce inelutavelmente da mesma situação na que o proletariado se encontra no regime burguês, porém não é por si mesma revolucionária, quer dizer, não leva necessariamente à derrocada do capitalismo, como têm sustentado e continuam sustentando com menor êxito os sindicalistas. Tanto é verdade, que os reformistas e até os fascistas admitem a luta sindical elementar, porém sustentam que o proletariado como classe não deveria realizar outra luta que a sindical. Os reformistas se diferenciam dos fascistas somente enquanto sustentam que se não o proletariado como classe, ao menos os proletários como indivíduos, cidadãos, devem lutar também pela democracia burguesa; em outras palavras, lutar apenas para manter ou criar as condições políticas para luta de resistência sindical.

Posto que a luta sindical se reveste de fator revolucionário, é mister que o proletariado a acompanhe com a luta política, que dizer, que o proletário tenha consciência de uma luta geral que envolve todas as questões mais vitais da organização social, que dizer, que tenha consciência de lutar pelo socialismo. O elemento “espontaneidade” não é suficiente para a luta revolucionária, pois nunca leva a classe operária além dos limites da democracia burguesa existente. É necessário o elemento consciência, o elemento “ideológico”, que dizer, a compreensão das condições em que se luta, das relações sociais em que vive o operário, das tendências fundamentais que operam no sistema destas relações, do processo de desenvolvimento que sofre a sociedade pela existência em seu seio de antagonismos irredutíveis, etc.

As três frentes da luta proletária se reduzem a uma só, para o Partido da classe operária, que o é precisamente porque assume e representa todas as exigências da luta geral. Certamente não se pode pedir a todo operário da massa ter uma completa consciência de toda a complexa função que sua classe está resoluta a desenvolver no processo de desenvolvimento da humanidade, pois isso deve ser pedido aos membros do Partido. Não se pode propor, antes da conquista do Estado, modificar completamente a consciência de toda a classe operária; seria utópico, porque a consciência da classe como tal se modifica somente quando tenha sido modificado o modo de viver da própria classe, isto é, quando o proletariado se converta em classe dominante, tenha a sua disposição o aparato de produção e de mudança do poder estatal. Porém o Partido pode e deve em seu conjunto representar esta consciência superior; de outro modo, aquele não estaria na cabeça, senão na cauda das massas, não as guiaria, mas seria arrastado. Por isso, o Partido deve assimilar o marxismo e deve assimilá-lo em sua forma atual, como leninismo.

A atividade teórica, a luta na frente ideológica, sempre foi descuidada no movimento operário italiano. Na Itália, o marxismo (por influxo de Antonio Labriola) tem sido mais estudado pelos intelectuais burgueses para falsificá-lo e adequá-lo ao uso da política burguesa, que pelos revolucionários. Assim temos visto no Partido Socialista Italiano conviver juntas pacificamente as tendências mais díspares, temos visto como opiniões oficiais do Partido as concepções mais contraditórias. Nunca imaginou a direção do Partido que para lutar contra a ideologia burguesa, para liberar as massas da influência do capitalismo, fora necessário antes de tudo difundir no Partido mesmo a doutrina marxista e defendê-la de todos os ataques. Esta tradição pelo menos não tem sido interrompida de modo sistemático e registra uma notável atividade continuada.

Diz-se, contudo, que o marxismo teve até aqui muita sorte na Itália e em certo sentido isto é verdade. Porém também é verdade que tal fortuna não tem ajudado ao proletariado, não tem servido para criar novos meios de luta, não tem sido im fenômeno revolucionário. O marxismo, ou algumas afirmações separadas dos escritos de Marx, tem servido à burguesia italiana para demonstrar que pela necessidade de seu desenvolvimento era necessário prescindir da democracia, era necessário pisotear as leis, era necessário rir da liberdade e da justiça; que dizer, se tem chamado marxismo, pelos filósofos da burguesia italiana, a comprovação que Marx fez dos sistemas que a burguesia empregará, sem necessidade de recorrer a justificações... marxistas, em sua luta contra os trabalhadores. E os reformistas, para corrigir esta interpretação fraudulenta, se fizeram democráticos, se converteram aos santos consagrados do capitalismo. Os teóricos da burguesia italiana demonstram habilidade ao criar o conceito da “nação proletária” e que a concepção de Marx devia aplicar-se à luta da Itália contra os outros Estados capitalistas, não à luta do proletariado italiano contra o capitalismo italiano; os “marxistas” do Partido Socialista têm deixado passar sem luta estas aberrações, que foram aceitas por um, Enrico Ferri, que passavam por um grande teórico do socialismo. Esta foi a fortuna do marxismo na Itália: servir de ingrediente para todos os indigestos molhos que os mais imprudentes aventureiros da pluma põem à venda. Marxistas assim têm sido Enrico Ferri, Guillermo Ferrero, Achille Loria, Paolo Orano, Benito Mussolini...

Para lutar contra esta confusão que se tem criado, é necessário que o Partido intensifique e torne sistemática sua atividade no campo ideológico, que se imponha como um dever dos militantes o conhecimento da doutrina do marxismo-leninismo, ao menos em seus termos mais gerais.

Nosso Partido não é um partido democrático, ao menos no sentido vulgar que comumente se dá a esta palavra. É um Partido centralizado nacional e internacionalmente. No campo internacional, nosso Partido é uma simples seção de um partido maior, de um partido mundial. Que repercussões podem ter e já há tido este tipo de organização, que também é uma necessidade da revolução? A própria Itália se dá uma resposta a esta pergunta. Por reação ao costume estabelecido pelo Partido Socialista, no que se discutia muito e se resolvia pouco, cuja unidade pelo choque contínuo das frações, das tendências e com freqüência os projetos pessoais se rompia numa infinidade de fragmentos desunidos, em nosso Partido se havia terminado com as discussões que não levavam a nada. A centralização, a unidade de direção e unidade de concepção se havia convertido numa paralisia intelectual. Também contribuiu a necessidade da luta incessante contra o fascismo, que verdadeiramente desde a fundação do nosso Partido já havia passado a sua fase ativa e ofensiva, porém contribuíram também as errôneas concepções do Partido, tal como são expostas nas “Teses sobre a tática” apresentadas ao Congresso de Roma. A centralização e a unidade se concebiam de modo demasiado mecânico: o Comitê Central, e o Comitê Executivo era todo o Partido, ao invés de representá-lo e dirigi-lo. Se esta concepção fosse permanentemente aplicada, o Partido perderia seu caráter distintivo político e se converteria, no melhor dos casos, num exército (e um exército de tipo burguês); perderia o que é sua força de atração, se separaria das massas. Para que o Partido viva e isto em contato com as massas, é mister que todo membro do Partido seja um elemento político ativo, seja um dirigente. Precisamente para que o Partido seja fortemente centralizado, se exige um grande trabalho de propaganda e de agitação em suas fileiras, é necessário que o Partido, de maneira organizada, eduque a seus militantes e eleve seu nível ideológico. Centralização quer dizer especialmente que em qualquer situação, inclusive em estado de sítio reforçado, inclusive quando os comitês dirigentes não podem funcionar por um determinado período ou foram postos em condições de não estar relacionados com toda a periferia, todos os membros do Partido, cada um em seu ambiente, estejam em situação de orientar-se, de saber extrair da realidade os elementos para estabelecer uma orientação, a fim de que a classe operária não se desmoralize senão que sinta que é guiada e que pode ainda lutar. A preparação ideológica da massa é, por conseguinte, uma necessidade da luta revolucionária, é uma das condições indispensáveis para a vitória.

Fonte: http://www.pacocol.org/es/Biblioteca/005_Gramsci/11.htm