ESPONTANEIDADE E DIREÇÃO CONSCIENTE

Antonio Gramsci (1931)*

Podem ser dadas várias definições sobre a expressão espontaneidade, porque o fenômeno a que se refere é multilateral. Há que se observar, de início, que a espontaneidade pura não se dá na história coincidindo com a mecanicidade pura. No movimento mais espontâneo os elementos de “direção consciente” são simplesmente incontroláveis, sem deixar documentos identificáveis. Pode por isso dizer-se que o elemento da espontaneidade é característico da “história das classes subalternas”, e até dos elementos mais marginais e periféricos dessas classes, os quais não tenham chegado à consciência de classe para si e por isso não suspeitam sequer que sua história possa ter importância alguma, nem que tenha nenhum valor deixar dela rastros documentais.

Existe, pois, uma multiplicidade de elementos de direção consciente nesses movimentos, porém nenhum deles é predominante nem ultrapassa o nível da sabedoria popular de um determinado estrato social, do senso comum, ou seja, da concepção de mundo tradicional daquele determinado estrato.

Este é precisamente o elemento que De Man contrapõe empiricamente ao marxismo, sem dar-se conta (aparentemente) de que está caindo na mesma posição dos que, atrás de descobrir o folclore, a feitiçaria, etc., e atrás de demonstrar que estes modos de conceber têm uma raiz historicamente robusta e estão tenazmente presos à psicologia de determinados estratos populares, crêem haver superado com isso a ciência moderna e tomaram por ciência moderna os libidinosos artigos das revistas de difusão popular da ciência e as publicações por entrega. Este é um verdadeiro caso de teatrologia intelectual, da qual há mais exemplos: os pesquisadores da feitiçaria relacionados com Maeterlinck, que sustentam que há que se recolher o fio da alquimia e da feitiçaria, cortado pela violência, para por a ciência em um caminho mais fecundo de descobrimentos, etc. Porém De Man tem um mérito incidental: mostra a necessidade de se estudar e elaborar os elementos da psicologia popular, historicamente e não sociologicamente, ativamente (ou seja, para transformá-los, educando-os, numa mentalidade moderna) e não descritivamente como ele faz; porém esta necessidade estava pelo menos implícita (e talvez inclusive explicitamente declarada) na doutrina de Ilich, coisa que De Man ignora completamente. O fato de que existam correntes e grupos que sustentam a espontaneidade como método demonstra indiretamente que em todo movimento “espontâneo” há um elemento primitivo de direção consciente, de disciplina. A este respeito há que se fazer uma distinção entre os elementos puramente ideológicos e os elementos de ação prática, entre os estudiosos que sustentam a espontaneidade como método imanente e objetivo do devir histórico versus os politiqueiros que a sustentam como método político. Nos primeiros se trata de uma concepção equivocada; nos segundos se trata de uma contradição imediata e mesquinha que revela uma origem prática evidente, a saber, a vontade prática de substituir uma determinada direção por outra. Também nos estudiosos tem o erro uma origem prática, porém não imediata como no caso dos políticos. O apoliticismo dos sindicalistas franceses antes da guerra continha ambos elementos: era um erro teórico e uma contradição (continha o elemento soreliano e o elemento de concorrência entre a tendência anarquista-sindicalista e a corrente socialista). Era, ademais, conseqüência dos terríveis fatos de Paris de 1871: a continuação, com métodos novos e com uma teoria brilhante, dos trinta anos de passividade (1870-1900) dos operários franceses. A luta puramente econômica não podia aborrecer a classe dominante, senão ao contrário. O mesmo pode dizer-se do movimento catalão, que não “aborrecia” a classe dominante mais do que reforçava objetivamente o separatismo republicano catalão, produzindo um bloqueio industrial republicano propriamente dito contra os latifundiários, a pequena burguesia e o exército monárquico. O movimento de Turim foi acusado ao mesmo tempo de ser espontaneísta e voluntarista ou bergosniano (!).

A acusação contraditória mostra, uma vez analisada, a fecundidade e a justeza da direção dada. Essa direção não era abstrata, não consistia numa repetição mecânica das fórmulas científicas ou teóricas; não confundia a política, a ação real, com a definição teorética; aplicava-se a homens reais, formados em determinadas relações históricas, com determinados sentimentos, modos de conceber, fragmentos de concepção de mundo, etc., que resultavam de combinações espontâneas de um determinado ambiente de produção material, com a casual aglomeração de elementos sociais díspares. Este elemento de espontaneidade não se esvaiu, nem mesmo se depreciou: foi educado, orientado, depurado de todo elemento estranho que pudesse corrompê-lo, para torná-lo homogêneo, porém de um modo vivo e historicamente eficaz, com a teoria moderna. Os mesmos dirigentes falavam de espontaneidade do movimento, e era justo que falassem assim: tal afirmação era um estimulante, um energético, um elemento de unificação em profundidade; era antes de tudo a negação de que se tratara de algo arbitrário, artificial, e não historicamente necessário. Dava à massa uma consciência teorética de criadora de valores históricos e institucionais, de fundadora de Estados. Esta unidade da espontaneidade e a direção consciente, ou seja, da disciplina, é precisamente a ação política real das classes subalternas enquanto política de massas e não simples aventura de grupos que se limitam a apelar às massas.

Sobre este propósito se estabelece uma questão teórica fundamental: pode a teoria moderna encontrar-se em oposição com os sentimentos espontâneos das massas? (Espontâneos no sentido de não devidos a uma atividade educadora sistemática por parte de um grupo dirigente já consciente, senão formado através da experiência cotidiana iluminada pelo senso comum, ou seja, pela concepção tradicional popular de mundo, coisa que muito vulgarmente se chama instinto e não é senão uma aquisição também, só que primitiva e elementar).

Não pode estar em oposição: entre uma e outras há diferença quantitativa, de grau, não de qualidade: tem que ser possível uma redução, por assim dizer, recíproca, um passo de umas à outra e vice-versa (Recordar que Kant queria que suas teorias filosóficas estivessem de acordo com o senso comum; a mesma posição se tem em Croce; recordar a afirmação de Marx na Sagrada Família, segundo a qual as fórmulas da política francesa da Revolução se reduzem aos princípios da filosofia clássica alemã). Descuidar – e mais ainda, depreciar – os movimentos chamados espontâneos, ou seja, renunciar a dar-lhe uma direção consciente, a elevá-los a um plano superior inserindo-os na política, pode amiúde ter conseqüências sérias e graves. Ocorre quase sempre que um movimento espontâneo das classes subalternas coincide com um movimento reacionário da direita da classe dominante, e ambos por motivos concomitantes: por exemplo, uma crise econômica determina descontentamento nas classes subalternas e movimentos espontâneos de massas, por uma parte, e, por outra, determina complôs dos grupos reacionários, que se aproveitam da debilitação objetiva do governo, para intentar golpes de estado. Entre as causas eficientes destes golpes de estado há que se incluir a renúncia dos grupos responsáveis em dar uma direção consciente aos movimentos espontâneos para convertê-los assim num fator político positivo. Exemplo das Vésperas sicilianas e discussões dos historiadores para averiguar se se tratou de um movimento espontâneo ou de um movimento concertado: me parece que nas Vésperas sicilianas se combinaram os dois elementos: a insurreição espontânea do povo italiano contra os provenzales – ampliada com tanta velocidade que deu a impressão de ser simultânea e, portanto, de basear-se num acordo, ainda que a causa fosse a opressão, já intolerável em toda área nacional – e o elemento consciente de diversa importância e eficácia, com o predomínio da conjuração de Giovanni da Procida com os aragoneses. Outros exemplos podem ser tomados de todas as revoluções do passado, nas quais as classes subalternas eram numerosas e estavam hierarquizadas pela posição econômica e pela homogeneidade. Os movimentos espontâneos dos estratos populares mais vastos possibilitam a chegada ao poder da classe subalterna mais adiantada pela debilitação objetiva do Estado. Este é um exemplo progressivo, porém no mundo moderno são mais freqüentes os exemplos regressivos.

Concepção histórico-política escolástica e acadêmica, para a qual não é real e digno senão o movimento consciente cem por cento e até determinado por um prazo traçado previamente com todo detalhe, o que corresponde (coisa idêntica) à teoria abstrata. Porém a realidade abunda em combinações do mais raro e é o teórico que deve identificar nessas raridades a confirmação de sua teoria, traduzir para a linguagem teórica os elementos da vida histórica, e não o reverso, exigir que a realidade se apresente segundo o esquema abstrato. Isto não ocorrerá nunca e, portanto, essa concepção não é senão uma expressão de passividade (Leonardo sabia descobrir o número de todas as manifestações da vida cósmica, inclusive quando os olhos do profano não viam mais que arbítrio e desordem).

* GRAMSCI, A. Escritos Políticos (1931).

Fonte:
http://www.webpcu.org/f_8.htm